O livro do génesis ou a origem das espécies?
O livro do génesis ou a origem das espécies?
Se quisermos ilustrar o conceito de «fóssil vivo», não conseguiremos encontrar seguramente um melhor exemplo do que o celacanto (Latimeria chalumnae). Os registos dos fósseis incluem as numerosas espécies que já povoaram a Terra mas que acabaram por se extinguir, quer pelo facto do seu meio ambiente ter sido destruído — por uma catástrofe planetária, por exemplo —, quer porque houve novas espécies melhor adaptadas que vieram ocupar os seus nichos ecológicos. Esta é a lei universal imposta pela selecção natural e só os denominados na linguagem corrente «fósseis vivos», ou seja, as espécies que sobrevivem desde tempos remotos, foram capazes de a evitar.
Com efeito, os celacantos são o exemplo mais representativo destas excepções à regra geral. De acordo com o registo fóssil, este tipo de peixes pré-históricos apareceu no período Devónico — há cerca de 400 milhões de anos — e alcançou o seu máximo esplendor durante o Carbonífero — há 250 milhões de anos. Porém, a partir do Cretácico superior — há 65 milhões de anos — não se conhece nenhum fóssil de celacanto, pelo que a comunidade científica chegou a acreditar que este tipo de peixes se tinham extinguido, uma convicção que só viria a ser afastada em 22 de Dezembro de 1938.
Na manhã desse dia, a conservadora do minúsculo museu de East London, na África do Sul, Marjorie Courtenay-Latimer, descobriu um peixe muito estranho entre a pesca que estava a ser descarregada nos molhes da cidade. Além de se fazer notar pelas suas grandes dimensões, esse peixe apresentava também um sinal claramente distintivo dos peixes ditos normais: possuía barbatanas lobuladas e não com raios, como seria vulgar. Intrigada com as assombrosas parecenças desse peixe com os fósseis de celacanto que tinha visto, Marjorie Courtenay-Latimer decidiu solicitar a opinião de J. L. B. Smith, um perito na matéria, que identificou muito rapidamente o animal, corroborando a conclusão inicial da conservadora do museu de East London.
No entanto, o segundo exemplar de celacanto dado a conhecer ao mundo só viria a aparecer em finais de 1952, nas Ilhas Comores, um arquipélago situado no Oceano Índico, na zona Norte do canal que separa Moçambique de Madagáscar. A sucessiva aparição de novos exemplares nos anos seguintes confirmou a existência de uma povoação mais ou menos estável da espécie naquele arquipélago. Aliás, até 1997 a comunidade científica mostrava-se convencida de que a população de celacantos baseada nas Comores era a única existente no mundo e que os exemplares apanhados no Canal de Moçambique — tal como o que tinha sido capturado na África do Sul 50 anos antes —, tinham sido desviados pela corrente de Agulhas.
Distribuição geográfica alargada
Mas nesse ano o mundo científico voltou a ser surpreendido quando um biólogo da Berkeley University da Califórnia, Mark V. Erdmann de seu nome, que se encontrava a passar a lua-de-mel com a sua mulher Arnaz na Indonésia, demonstrou a existência de uma colónia de celacantos naquele arquipélago, mais precisamente em Manado Tua, uma das Ilhas Célebes, na região de Sulawesi. Em resumo: a mais importante descoberta zoológica do século XX voltava a repetir-se e a nova espécie seria baptizada como Latimeria menadoensis.
Dado que as Célebes se encontram a quase 10.000 quilómetros de distância do arquipélago das Comores, esta descoberta legitimava que se suspeitasse da provável existência de mais colónias de celacantos noutras áreas. Na realidade, a descoberta de Erdmann estendia de forma muitíssimo considerável a distribuição geográfica do celacanto, que poderia contar com várias populações ao largo do Oceano Índico ou inclusivamente noutros mares, como o Indo-Pacífico, por exemplo. Como os celacantos permanecem por norma em cavidades que se encontram a uma profundidade superior a 100 metros, o facto de não terem sido detectadas mais populações era facilmente justificável. E no início do segundo trimestre de 2001 essa tese confirmava-se, com a descoberta de mais uma colónia na baía de Sodwana, na costa nordeste da África do Sul.
Os celacantos são grandes peixes marinhos com uma característica coloração cinzento-azulada, cujo tamanho varia de 1,2 a 1,3 metros de comprimento. Habitam em águas profundas, geralmente entre os 150 e os 250 metros de profundidade. Durante o dia resguardam-se em grutas e cavidades submarinas formadas pela lava proveniente de erupções vulcânicas e à noite sobem até às zonas da superfície, em busca dos peixes dos recifes que constituem o seu principal alimento. Da sua anatomia externa destacam-se os pares de barbatanas lobuladas, com grande capacidade de rotação, e uma cauda simétrica com un típico lóbulo apical. Quanto à anatomia interna, o esqueleto é fortemente ossificado e possuem uma bexiga natatória que contém óleo e lhes permite imergirem a profundidades elevadas.
O celacanto deposita ovos de grande tamanho — até 9 centímetros de diâmetro e 300 gramas de peso —, que depois de serem fecundados internamente se desenvolvem no útero das fêmeas. A população das Ilhas Comores deve contar com aproximadamente 200 indivíduos e ainda não se recolheram dados suficientes sobre os celacantos da Indonésia para poder estimar-se a sua população, tal como sucede com a colónia recentemente descoberta na África do Sul.
Antepassados dos vertebrados terrestres
Os celacantos têm uma grande importância evolutiva dado que, juntamente com os peixes pulmonados, são os parentes ancestrais vivos mais próximos dos vertebrados terrestres, ou tetrápodes. A transição do ambiente aquático para o meio terrestre, que teve lugar no Devónico superior, há 370 milhões de anos, foi um dos episódios mais importantes na história natural dos vertebrados, pois implicou numerosas alterações morfológicas, fisiológicas e etológicas — de comportamento no meio natural —, tendo os peixes de barbatanas lobuladas sido os seus protagonistas.
Mas se em 1989 se estimava que a população total de celacantos nas Ilhas Comores devia contar com aproximadamente 200 indivíduos, entre 1991 e 1994 o número de celacantos observados desceu para números alarmantes. A causa mais provável deste declive é a sobreexploração pesqueira da zona, que provoca uma redução significativa no número de espécies que podem servir de alimento ao celacanto. Além disso, as características intrínsecas da biologia deste peixe pré-histórico — nomeadamente o seu complexo ciclo reprodutivo, com fecundação interna, desenvolvimento de um parco número de embriões no interior das fêmeas e um período de gestação muito extenso — contribuem para a sua vulnerabilidade e situam esta espécie como candidata a uma rápida extinção.
Finalmente, a crença existente nalguns países asiáticos de que o líquido do interior da espinha dorsal do celacanto permite prolongar a vida tem sustentado a manutenção de um florescente mercado negro de produtos do celacanto. Ou seja, o futuro deste peixe é, a cada dia que passa, mais incerto. Ele, que conseguiu sobreviver às extinções em massa ocorridas nos últimos 400 milhões de anos, corre hoje o risco de desaparecer por causa da estupidez humana.
Felizmente, ainda estamos a tempo de evitar a sua extinção: a estrita protecção implementada nas costas das Ilhas Comores — foram tomadas medidas concretas para impedir que se repetisse o espólio ocorrido nos anos a seguir à descoberta dos celacantos — deve travar o declive da sua população. E se a descoberta da colónia da Indonésia já pressupunha um alívio para a conservação da espécie, o novo achado na África do Sul torna o panorama um pouco mais animador. Se a isso se juntar a sorte que tem tido, este fóssil vivo poderá continuar a desafiar a extinção durante alguns milhões de anos mais.