Predação excessiva remonta à pré-história
Predação excessiva remonta à pré-história
Já há várias décadas que os ambientalistas, um pouco por todo o mundo, nos vêm a alertar para o perigo que representam, para o equilíbrio global do planeta, as profundas alterações que se estão a verificar nos ecossistemas marinhos. Desde a diminuição de espécies — infelizmente, em demasiados casos, a sua extinção... — à poluição, os problemas são sobejamente conhecidos e falta agora é pôr-lhes um travão. Mas do que provavelmente essas organizações ambientalistas não suspeitavam é que boa parte desses problemas já se arrastam há muito mais tempo do que o senso comum levaria a crer.
Os resultados de um estudo global dos oceanos intitulado «Historical Overfishing and the Recent Collapse of Coastal Ecosystems» — que foi recentemente levado a cabo por uma equipa de 16 cientistas de várias especialidades e de diversos países —, revelam que parte significativa das tendências de degradação que ao longo das últimas décadas se têm notado em determinados ecossistemas marinhos começaram a ser desencadeadas há muitíssimo mais tempo, sendo concretamente resultado de capturas excessivas de peixes e mamíferos. Publicado na Science Magazine, o estudo fez uma análise histórica da actividade piscatória em diversos pontos do globo para tentar avaliar as consequências que foi tendo no ambiente oceânico até à data.
As conclusões foram evidentes: os níveis insustentáveis actualmente registados nos recursos costeiros têm a sua origem há muito tempo atrás. A análise efectuada por esta equipa de especialistas mostrou que os ecossistemas marinhos estão a entrar em colapso devido a séculos a fio de pesca excessiva e de depredação dos recursos, não sendo um fenómeno exclusivo do último meio século, como até hoje era opinião corrente. Apesar de se basear nas pesquisas ecológicas do meio marinho efectuadas até hoje, essa percepção caía por terra devido a uma só razão: na sua esmagadora maioria, esses estudos foram realizados nos últimos 50 anos, fazendo com que a análise da estrutura desses ecossistemas estivesse incompleta no tempo.
Na opinião dos autores do estudo agora realizado, há provas de que os efeitos prejudiciais da intervenção humana nos ecossistemas já é muito anterior a esse período e que há igualmente o risco de vários outros recursos marinhos poderem vir também a estar em perigo a médio prazo, devido a acções que foram iniciadas já há muito tempo pelo ser humano. Perante os resultados obtidos, a equipa de investigadores estabeleceu também parâmetros para a recuperação dos sistemas onde a erosão dos recursos mais se tem feito sentir.
Reunindo no seu seio biólogos marinhos, paleontólogos, arqueólogos e historiadores, entre outros cientistas — com o maior peso relativo de investigadores a caber aos Estados Unidos e à Austrália —, a equipa analisou a evolução de recifes de coral, de florestas de kelp subaquáticas, de alguns fundos rochosos em litorais de correntes frias e quentes e ainda mangais e regiões de estuários de diversos pontos do planeta, com o objectivo de conferir à sua abordagem uma perspectiva multifacetada. Os resultados foram muito semelhantes em todos os biótopos analisados.
Depredação ou selecção natural implacável?
As provas recolhidas e analisadas revelam que havia outrora nesses ecossistemas uma grande abundância de mamíferos — sobretudo focas —, de tartarugas e de outros animais de grande porte, além de peixes. Um número muito considerável deles ou já se encontram hoje extintos ou então a sua quantidade diminuiu significativamente. No caso de algumas regiões costeiras do continente americano, por exemplo, ao contrário do que se pensava, algumas catástrofes já estavam em curso quando os europeus lá chegaram. A análise dos dados recolhidos mostra que já nessa altura havia muito menos populações de animais de grande porte nessas áreas do que tinha havido tempos antes.
Ao invés do que se verifica nos dias de hoje, nessas zonas praticamente todas as comunidades de fauna costeira eram dominadas por populações de grandes animais, refere o principal autor do estudo, Jeremy Jackson. Uma outra investigadora da sua equipa, Karen Bjorndal, da Universidade da Florida, comentou que a equipa descobriu que o início dos problemas ambientais marinhos ocorreu muito antes da chegada dos europeus e que a ideia de que os povos nativos teriam tido um impacte benigno no ambiente em que viviam foi contrariada. Segundo os investigadores já milhares de anos antes da colonização europeia os indígenas estavam longe de praticarem uma predação prudente dos recursos marinhos à sua disposição.
Um exemplo de um animal que já estaria nessa altura a caminho da extinção é o da vaca-marinha de Stellar, que habitava as águas frias do Alasca: há 259 anos havia 5 mil exemplares e hoje encontra-se extinta. Mas ainda no Oceano Pacífico há um outro exemplo, o da lontra marinha, cuja população há 260 anos se estimava superior a 100 mil e que hoje não vai além dos 30 mil. Segundo os cientistas, a predação excessiva iniciada há muitas centenas ou mesmo milhares de anos começou a provocar um efeito de dominó que hoje está a ter consequências dramáticas. Na opinião de Karen Bjorndal, «a grande mensagem a reter do nosso trabalho é que os actuais colapsos de ecossistemas marinhos resultam de uma predação excessiva que nalguns casos remonta a eras pré-históricas».
Um caso curioso que também foi registado é que o vulgar bacalhau (Gadus morua) do Oceano Atlântico há 3.550 anos media cerca de um metro e hoje não passa de um terço disso. Todavia, nalgumas outras zonas estudadas pela equipa — como o caso de Chesapeake Bay, no litoral do estado da Virginia, na costa leste dos Estados Unidos —, verificou-se que a acção exercida desde que os primeiros colonos ingleses ali se instalaram, nomeadamente a construção e a poluição, teve efeitos devastadores no ecossistema, sendo que uma das populações mais afectadas da fauna endógena foi a das ostras daquela zona: há 116 anos conseguiam-se capturar nos bancos da baía 620 toneladas de ostras por ano, enquanto hoje a produção já não consegue ir além das 12 mil toneladas por ano.
Outros dos ecossistemas costeiros que a equipa de cientistas examinou em todo o mundo foram as Caraíbas e as águas australianas. Nas Caraíbas, há 300 anos havia 16,1 milhões de exemplares de tartaruga-verde e a foca-monge era abundante; hoje não haverá mais do que 1,1 milhões de tartarugas e nenhuma foca-monge, pois esta está extinta. Nos mares da Austrália Oriental, ainda há 100 anos havia 1 milhão de dugongos. Hoje, estima-se que sejam somente cerca de 14 mil. Em todas as zonas estudadas, os investigadores examinaram sedimentos marinhos com 125 mil anos, registos arqueológicos de povoados costeiros nos últimos 10 mil anos, registos da expansão colonial europeia nas Américas e no Pacífico Sul desde o século XV e estudos ecológicos do século passado.
Uma das conclusões dos cientistas foi que a caça excessiva de grandes animais pertencentes ao topo da cadeia alimentar — como mamíferos e tartarugas, por exemplo — teve como consequência a eliminação de espécies mais pequenas dos ecossistemas, incluindo ostras e outros bivalves capazes de filtrarem a água e controlarem o desenvolvimento das algas. Estes seres mais pequenos acabaram por ser devorados pelas anteriores presas dos animais eliminados. Karen Bjorndal acredita que a chacina iniciada nas Caraíbas há mais de 3 mil anos da tartaruga-verde e de outras espécies que se alimentavam de algas conduziu a um desenvolvimento excessivo destas plantas, que agora estão a matar por asfixia os recifes de coral na região. Contudo, a cientista defende que uma parte destas perdas ambientais ainda poderá ser recuperada implementando-se novos programas de protecção à vida marinha.
Recorde-se que as teorias académicas que defendem que a extinção de determinadas espécies animais não é um fenómeno recente — e que, pelo contrário, resultam de excessos nas capturas iniciados há milhares de anos —, têm vindo a ganhar cada vez mais adeptos entre a comunidade científica. Alguns investigadores asseguram mesmo que a principal razão da extinção de certos animais de grande porte, como os mamutes e os tigres dentes-de-sabre, por exemplo, não terá sido a Idade do Gelo mas antes o resultado do seu abate em massa num período que se estendeu desde os 30 mil e os 10 mil anos atrás. Ou seja, sensivelmente após o Homem ter descoberto e começado a utilizar novas armas de caça mais eficazes, como machados e flechas. O advento da Idade do Gelo só terá vindo dar o golpe de misericórdia a essas espécies, apagando-as definitivamente do mapa.